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Baleia Azul vs Nerve: a vida imita a arte?

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por Martha Gabriel, 15 de abril de 2017 10:39

Imagem: Baleia Azul (vida) vs Nerve (ficção, arte)

Algumas situações nos deixam tão perplexos e desorientados devido à sobreposição entre a ficção e a realidade, que se torna quase impossível não pensar sobre a clássica questão de se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida. Quem assistiu ao vivo pela televisão os ataques de 11 de setembro de 2001 em Nova York conhece bem essa perplexidade, pois provavelmente se sentiu vivendo o filme Nova York Sitiada, lançado alguns anos antes, em 1998.

Tive a mesma sensação quando tomei conhecimento do macabro jogo de desafios Baleia Azul (blue whale), que está associado a mais de uma centena de suicídios de jovens no mundo. Os relatos sobre a dinâmica dos desafios noticiados na mídia pareciam cenas do filme “Nerve: um jogo sem regras”, que assisti no ano passado e analisei em um artigo que escrevi sobre filmes para entender o mundo digital:

“O filme [Nerve] explora de maneira muito interessante as possibilidades de manipulação e gamificação da sociedade por meio do uso das tecnologias digitais e sociais, que no limite podem anestesiar e desumanizar. Alienação em grupos de indivíduos não é novidade na sociedade, no entanto, o poder de amplificação dessa alienação propiciado pelas tecnologias leva a questão para outro patamar de importância. O valor de Nerve reside justamente nessa discussão.

Para efeito comparativo de timing, o filme Nerve foi lançado dois meses depois de publicadas as primeiras notícias sobre a associação de suicídios na Rússia aos desafios do Blue Whale, em maio/2016. Considerando-se o tempo necessário para a produção de um filme, poderíamos especular que os acontecimentos do jogo na vida real e as filmagens da ficção estavam ocorrendo praticamente simultaneamente. Poderia, então, o filme inspirar o jogo em algum grau? Ou vice-versa?

Vida, arte & realidade

Então, a vida imita a arte ou a arte imita a vida? Apesar dessa pergunta ser a primeira a surgir nessas situações, penso que a questão correta, que melhor pode nos auxiliar a refletir sobre o assunto é: será que uma realidade maior de mundo não inspirou simultaneamente tanto o jogo Blue Whale (na vida) quanto o filme Nerve (na arte)? Ao invés de um ser causa do outro,  será que ambos não são apenas sintomas da mesma doença?

Talvez, a sensação de que a arte e a vida convirjam seja o resultado de inúmeros sinais e fatos que compõem o nosso contexto (sintomas) e que, juntos, criam uma nova realidade de mundo (por mais assustadora que seja). Assim, possivelmente, tanto os desafios do jogo Blue Whale quanto as questões levantadas no filme Nerve sejam consequências do nosso contexto atual – ou seja, reflexos da nossa realidade. Nesse sentido, provavelmente, tanto a vida quanto a arte (sintomas) estariam imitando a realidade (doença).

Vejamos alguns fatos reportados nos últimos anos:

Além disso, a disseminação de tecnologias digitais na sociedade na última década tem ampliado o poder de conexão entre as pessoas, o que favorece: 1) viralização de jogos e desafios, 2) bullying  e 3) pressão de grupos.

Portanto, vemos que, na nossa sociedade, o suicídio entre jovens já era uma questão preocupante muito antes do surgimento do Blue Whale ou de Nerve, e que a transformação tecnológica no mundo tem proporcionado novos modos para se disseminar conteúdos (independe de serem bons ou ruins).

Talvez, por isso, essa realidade (índices maiores de suicídio + poder tecnológico de disseminação de jogos e desafios) tenha inspirado a criação de mais filmes com essa temática, como:

Chatroom (filme, 2010)

The Sunset Limited (filme, 2011)

13 Reasons Why (série original Netflix, 2017)

The Discovery (filme original Netflix, 2017)

Mundo complexo, problemas complexos

Normalmente, o caminho mais fácil para se atacar qualquer problema é encontrar um único culpado, buscando uma única relação causa-efeito, ou sintoma-doença. No entanto, esse caminho é ilusório e perigoso, pois frequentemente não apenas não consegue resolver a questão, como também desvia a nossa atenção das verdadeiras soluções. O mundo está mais complexo e, assim, as relações causa-efeito também. Isso requer que tenhamos muito mais cuidado na abordagem e solução de problemas.

Internet, jogos  & educação

Hoje, a internet é considerada o vilão da vez – é comum ouvir pais e avós reclamando que os filhos estão alienados por causa dela. Na geração anterior, o videogame foi o eleito arqui-inimigo da educação. Antes dele, estudos mostram que as histórias em quadrinhos, quando surgiram, também foram vilanizadas como instrumentos da perdição. No entanto, o que a história nos ensina é que tanto a internet, quanto os jogos e as HQ, são formas de acesso à inquietação social vigente, como também o são os livros, cinema, cartazes, telefone, e qualquer outra forma de comunicação ou expressão.

Na época em que meus filhos eram crianças, uma das discussões mais recorrentes era sobre a proibição, ou não, de jogos eletrônicos violentos, sob a ótica simplista de que a vida imita a arte. Hoje, estamos discutindo jogos de suicídio na internet, sob a mesma ótica. No entanto, será que, antes de mais nada, não deveríamos nos perguntar – Porque esses jogos e desafios são produzidos? Quem eles atraem? Por que? — Em outras palavras, deveríamos refletir sobre a sociedade que está gerando esse tipo de jogo.  Audiência é diretamente relacionada com interesse. Para solucionar o problema não adianta combater apenas o efeito, precisamos também, e principalmente, detectar, compreender e atacar as suas causas. Outras lutas importantíssimas  — como a do uso de drogas, alcoolismo, etc —  nos ensinam essa mesma lição. Se dependessem de uma simples relação causa-efeito, provavelmente já estariam resolvidas.

Portanto, podemos argumentar que a arte e a vida imitam a realidade, em um jogo extremamente complexo de correlações. Nesse jogo, provavelmente arte e vida são apenas sintomas da mesma doença instaurada na nossa realidade. Combater os sintomas apenas não resolve o problema — é preciso encontrar e eliminar a causa. Assim, nesse contexto, acredito que a melhor pergunta seja:  “O que precisamos fazer para transformar nossa realidade para que ela, então, produza a vida e arte que desejamos?”.

(*) Photo by Thomas Kelley on Unsplash

3 Comentários

  1. giuliano disse:

    O ser humano vive um vazio constante. Ele, assim com personagens de videogame, filmes ou quadrinhos precisa de uma motivação para viver, para se sentir um “herói”.
    Estão escolhendo viver os modelos de “heróis” que a comunicação digital deu uma voz muito grande, como atores e atrizes famosos, youtubers ou melhor os influenciadores digitais.
    É preciso orientar o ser humano a ser o protagonista da sua vida e procurar ser um “herói” dentro do seu pequeno mundo, onde temos muito para fazer, que seria se doar para uma causa social em vez de reclamar da política, cuidar do bem-estar em vez de olhar para o “bem-estar” alheio, produzir conteúdo ou algo que ajude a humanidade e poderia ficar aqui escrevendo sem parar. Seja você sua referência, seu modelo de “herói” e pare de querer se comparar com a fama alheia. Largue estes modelos maquiados e busque ser um modelo de ser humano melhor. Aproveite a chance que a comunicação digital trouxe para trazer esta experiência para outros, mas sem buscar o sucesso pelo sucesso. Sucesso é mudar o mundo para melhor.
    Vejo a necessidade que as pessoas têm de serem amadas, mas não procuram ser amáveis no meio digital. Vira disputa de ego mas numa amplitude muito maior.
    Sempre acreditei nisso: quando o ser humano cria novas tecnologias também gera novos problemas que vamos precisar lidar, hoje numa escala maior. Sempre vai ser assim. Hoje a depressão é um problema moderno, porque nunca conhecemos tantas pessoas mas também nunca estivemos tão sozinhos. Seja você sua melhor companhia.

    • Ed Lecter disse:

      Essa é a geração mais idiota do mundo de todos os tempos e a culpa é dos pais. O problema é a completa falta de valores morais e éticos.
      Tudo é relativizado, tudo ficou normal, nada mais escandaliza ninguém.
      As bases da civilização foram destruídas e os jovens são materialistas e usam as pessoas como objetos e só pensam em consumir, em ter ao invés de ser, em aparências em ficar bem “na fita” com a galera, em seguir a manada.

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