A Educação na Era Digital — entrevista de Martha Gabriel no Jornal Zero Hora

Educ@r – A (r)evolução digital na Educação
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Revolução digital na educação – entrevista de Martha Gabriel para a Revista Wide
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Martha Gabriel
por Martha Gabriel, 15 de julho de 2013 08:18

1. Pesquisas apontam que os professores, no Brasil, em geral, ainda utilizam muito pouco as novas tecnologias em sala de aula. Mesmo adolescentes de baixa renda têm acesso a novas tecnologias em casa, muito mais do que na escola. Distribuir tablets e outros equipamentos diminui o problema? Qual deve ser a principal ação do governo, na educação pública, para acelerar esse processo?

As tecnologias digitais horizontalizaram o acesso à informação e têm modificado profundamente o aprendizado – tanto no que se refere à cognição como em seu modelo, que é muito mais descentralizado (o estudante tem na internet inúmeras opções de conteúdos para acessar além da escola, professor e bibliotecas) e personalizado (o ritmo de acesso e tipos de conteúdos são determinados pelo estudante). No entanto, os estudantes têm abraçado o digital mais rapidamente do que as instituições de ensino — a situação predominante é termos alunos 2.0 enquanto pais, professores e escolas ainda são 1.0. Acredito que a única solução para conseguirmos professores e escolas digitais é a educação digital dos professores. A disponibilização de tecnologias de acesso (wi-fi) e hardware de acesso (tablets, notebooks, laboratórios, etc.) são desejáveis, mas não adiantam nada se professores não souberem como utilizá-los. É importante salientar que saber utilizar o ambiente digital na educação não se refere apenas a saber como “operar” dispositivos mas sim, e principalmente, saber como articular tecnologias e conteúdos digitais em conjunto com os analógicos de forma a aproveitar da melhor maneira possível esses ambientes para a educação. Isso só é possível por meio da educação digital para que o professor compreenda quais os impactos do digital na educação, como isso afeta o aluno e a função do professor e como se habilitar no uso do ambiente digital. No Brasil fala-se muito de inclusão digital, no entanto, acredito que sem educação digital, a inclusão não funciona.

2. Muitas vezes, os alunos conhecem melhor as novas tecnologias do que o professor. Como o docente pode tirar proveito dessa diferença?

Os jovens tendem a ter uma fluência maior com as novas tecnologias digitais, no entanto, essa fluência normalmente acontece em um nível superficial. Eles usam essas tecnologias de forma a solucionarem os seus problemas cotidianos, como estar em contato com amigos, jogar, buscar a informação que desejam, mas sem um conhecimento mais profundo de como fazer isso. Por exemplo, a grande maioria dos estudantes não sabe fazer uma busca booleana no Google, ou utilizar todas as suas funcionalidades além da busca. Além disso, todos os dias surgirão tecnologias novas e é totalmente normal que ninguém conheça todas, nem mesmo os alunos (que focam normalmente nas tecnologias que solucionam as suas demandas). O professor por sua vez, mesmo não tendo a mesma velocidade de adoção das novas tecnologias, têm uma maturidade e preparo para relacionar conteúdos e causar reflexão, que podem auxiliar muito os alunos em suas atividades diárias. Por exemplo, um professor que ensine busca booleana e ajude os estudantes a refletir e otimizar a sua ação nos ambientes digitais estará tirando proveito das suas habilidades e eliminando o problema da diferença de ritmo de adoção do digital. Some-se a isso que existem tecnologias e sistemas digitais específicos para cada área do conhecimento, como CADs, APPs de realidade aumentada para explorar espaços específicos, sistemas de acesso a exposições de arte virtuais, etc., que não são os sistemas populares que a maior parte dos alunos conhece. Assim, o professor pode usar as suas habilidades de conhecimento específico para encontrar e apresentar soluções digitais aos alunos que contribuam para a formação específica e que trarão benefícios no engajamento e aprendizado. Portanto, o professor também pode conhecer melhor as tecnologias digitais, mas provavelmente não serão as mesmas que os alunos conhecem bem. Isso é excelente e favorece a troca de conhecimentos e uso de habilidades com aprendizado mútuo.

3. É possível manter a privacidade em tempos de redes sociais? E quais devem ser os limites nas relações entre alunos e professores?

Acredito que seja possível manter a privacidade em tempos de redes sociais online, mas o problema é que isso tem se tornado cada vez mais difícil e trabalhoso para se fazer. Privacidade é a revelação seletiva de informação – ou seja, privacidade é escolher que informações revelar em cada contexto. Se no mundo offline é fácil saber que estamos na escola, ou no quarto ou em uma festa, no mundo digital é muito difícil saber “onde” realmente estamos pois há uma interpenetração muito grande entre os espaços (inclusive com os espaços físicos) e uma facilidade muito grande de se copiar e propagar informações entre quaisquer espaços. Assim, para manter a privacidade e revelar apenas o que realmente se deseja, é necessário prestar sempre muita atenção no contexto em que se está publicando (em que sistema, APP, rede social, ambiente público ou privado, quem pode ver e propagar a informação) e pensar bastante sobre o que se está publicando. Assim, o esforço é muito maior para manter a privacidade na era digital.

Justamente por essa dificuldade em se analisar post a post no ambiente digital, acredito que de forma geral seja muito complicado que os professores e alunos sejam “amigos” nas redes sociais que frequentam, pois isso provoca uma sobreposição das vidas pessoais de ambos e isso pode não ser interessante para a relação profissional. No modelo tradicional de escola existiam barreiras físicas que delimitavam naturalmente a relação aluno-professor. Na era digital, essas barreiras não existem mais e é essencial que o professor analise e determine quais limites devem ou não ser mantidos. A melhor solução para isso normalmente é o professor separar perfis pessoais e profissionais e se relacionar com os alunos nos perfis profissionais.

4. No livro, a senhora apresenta o conceito de “troll”, relacionado àquele aluno que desestabiliza o ambiente, com provocações que pretendem provocar conflitos. Na internet, esse tipo de comportamento pode ser mais perigoso pela possibilidade do anonimato. Como esse tipo de comportamento se diferencia do bullying? E como os professores podem diferenciar o estudante questionador de um perfil ao estilo “troll”?

Apesar do termo “troll” se popularizar com a internet, o comportamento “troll” é antigo e todo professor conhece. O “troll” é aquele aluno que atrapalha a aula, faz brincadeiras ou provocações para desestabilizar e gerar conflitos no ambiente. Já o aluno questionador, mesmo quando é desafiador, ele não tem um comportamento provocativo. Todo professor já teve um aluno “troll” e a única maneira de lidar com eles é reverter o cenário e fazer com que ele perca a força perante os colegas que o apoiam.

Já o bullying, que também é algo antigo e que já acontecia na sala de aula tradicional, é um comportamento agressivo em direção a uma pessoa – que normalmente são outros estudantes, mas que pode também, eventualmente, ser o professor. O “troll” atrapalha, mas normalmente não se vale de formas de violência e não é ilegal. O bullying é uma violência direcionada, podendo ser física ou psicológica, e contra a lei.

Tanto um quanto o outro se acentuam e se tornam mais abrangentes na era digital devido não apenas ao anonimato, mas também às diversas novas formas para se manifestarem. Se antes, esses comportamentos estavam confinados predominantemente no ambiente físico da escola e no horário das aulas, agora eles podem continuar depois do horário escolar e invadir a casa das pessoas por diversas mídias – redes sociais, mobile, etc. Some-se a isso o fato de que durante as aulas no ambiente escolar, esses comportamentos também podem se tornar mais complexos pois além de acontecerem offline, acontecem simultaneamente online, se intensificando.

De qualquer modo, sempre foi um desafio lidar com bullying e trolling e, na era digital, esse desafio se torna ainda maior.

5. A senhora diferencia hábitos e vícios digitais. Como os pais podem identificar quando a criança ou o adolescente ultrapassa essa linha tênue? Quais os principais sinais de alerta?

O ambiente digital traz consigo inerentemente novos hábitos e também novos vícios. No entanto, acredito que a diferença entre hábito e vício possa ser generalizada para qualquer tipo de comportamento, sejam eles digitais ou não. Enquanto os hábitos podem ser positivos ou negativos em relação ao modo como afetam as nossas vidas, eles normalmente não estão associados a crises de abstinência. O vício, por outro lado, está sempre associado a comportamentos que causam efeitos negativos nas nossas vidas e vêm acompanhados de crise de abstinência. Dessa forma, os vícios são muito mais difíceis de serem vencidos que os hábitos, por isso, quando detectados, provavelmente requerem auxílio para serem superados.

Assim, acredito que quando um novo comportamento surge na vida do filho – seja ele digital ou não — o primeiro passo dos pais deve ser observar se esse comportamento em questão está causando efeitos bons ou ruins na vida do filho. Se os efeitos forem ruins, pode ser um hábito ruim ou um vício. Se o filho apresenta sinais de irritação quando afastado do comportamento e sente uma necessidade latente constante de retornar a ele, provavelmente ele está relacionado a um vício.

É importante notar que, no caso dos hábitos digitais dos filhos, para que se faça um diagnóstico correto, muitas vezes os pais precisarão de ajuda. Por exemplo, se um pai ou uma mãe não conhece o ambiente digital, eles podem julgar de forma equivocada que o uso desse ambiente está prejudicando a vida do filho porque ele se distancia de outras pessoas. No entanto, pode ser que o filho esteja se aproximando de outras pessoas ou até esteja mais íntimo, só que por outro canal. A mesma coisa pode acontecer em relação aos estudos – pode-se avaliar por engano que o filho não esteja estudando porque ele está o tempo todo no computador, tablet ou smarphone, quando, no entanto, ele pode estar estudando muito mais do que lendo um livro físico. Assim, a análise inicial muitas vezes requer algum tipo de ajuda.

6. As novas tecnologias precisam ser incorporadas às práticas educacionais, mas elas são capazes de substituir todos os recursos da educação tradicional? Como equacionar as práticas “mais antigas” com as tecnologias que se modificam em alta velocidade?

Enquanto o ser humano tiver uma dimensão de vida offline, acredito que nada substitui a nossa experiência nessa dimensão. O online vem acrescentar uma camada digital no mundo e penso que é justamente a integração dessas duas dimensões – online e offline – que proporcionam as melhores experiências. O digital sem o offline é manco e o offline sem o digital é limitado. Assim, conforme as pessoas utilizem cada vez mais a camada digital, precisaremos cada vez mais integrar as experiências nessas duas camadas, de forma transparente. No caso da educação, as práticas tradicionais não são necessariamente substituídas, mas são principalmente modificadas e ampliadas pelo digital. Na minha opinião, a única forma de equacionar essa integração constante que se apresenta entre tradicional e digital é a educação contínua dos professores. Não podemos usar e nos apropriar de algo que não conhecemos, portanto o primeiro passo é conhecer e se interessar constantemente pelo novo. Depois de conhecer e compreender o novo, é o caminho natural que se comece a imaginar de que forma esse novo pode complementar, modificar ou mesmo, eventualmente, substituir o tradicional. Acredito que sempre foi assim. A diferença agora é a velocidade de mudança, que é vertiginosa e requer uma maior disciplina e um ritmo acelerado para acompanha-la.

1 Comentário

  1. VILSON DIAS MORALES disse:

    O que me chamou bastante a atenção, foi o que ela comentou sobre o fato de que antigamente havia uma barreira bem formal nas relações entre alunos e professores, o que mudou muito atualmente depois dos avanços tecnológicos, as chamadas redes sociais romperam com essa barreira (professor-aluno) e assim como na opinião dela eu acho que os professores devem ter perfis pessoais e profissionais, pois se não, a vida privada nossa acaba sendo vista por nossos alunos, e isso pode se tornar em alguns casos um problema a termos de enfrentar. O melhor remédio para isso é não termos nossos alunos em nossos perfis pessoais nas redes sociais.

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